sábado, 9 de outubro de 2010

Reconto


Tinha sido de facto para aquela aldeia um milagre, para o menino era bem diferente, a história era outra, mas essa não a conseguia explicar apenas sentir ou talvez cheirar…
A par da euforia que se passou a viver naquela aldeia, das perguntas constantes e das visitas surpresa em sua casa, na cabeça do menino vivia-se uma grande confusão, nada percebia e começava a não querer perceber, ao contrário dos pais que motivados com a agitação e orgulhosos com a proeza do filho fomentavam d e dia para dia o acontecimento.
Todos os dias algo novo na história surgia, agora um arco-íris tinha surgido quando o menino avistou a flor, e foi por segui-lo que a encontrou, uma mensagem divina talvez, ou uma força do destino que ali o levasse, como um cobertor que se puxa mas nunca chega, como a folha que o cobriu e o acolheu e que ele ainda não percebeu o espanto de todos em tal ter acontecido…
Era uma vez um menino que estava farto de viver onde vivia, todos eram mais velhos e por isso não tinha com quem falar, nem tão pouco brincar…ouvia os lamentos dos velhos…as histórias das velhas e pouco mais…
Escondia isso dos pais, esses pareciam sempre tão felizes, tão preenchidos, tão…como hei-de explicar…perfeitos, e a última coisa que queria era desiludi-los, mostrar tristeza quando sabia que de tudo faziam para ele ser feliz. Mas não o era, tanto não era que a vida dele era sonhar, sonhar com o que jamais poderia vir a acontecer e imaginar. Vivia de ilusões, de amigos imaginários e num mundo de possibilidades que não estavam ao seu alcance.
Costumava não poucas vezes pensar que se não conseguisse sonhar não conseguiria certamente viver. Mas par além disso mais não conseguia fazer, aquelas terras conhecia como a palma das suas mãos, habituada a andar por elas nem que não fosse atrás dos pais enquanto trabalhavam, às vezes ajudava, mas quase sempre era dispensado, mandavam-no ir brincar, como se isso fosse possível para ele. Mas isso eles não sabiam. Os pais não sabiam muitas coisas do menino e o menino sabia coisas a mais dos pais, e dos mais velhos.
Todos os dias a mesma coisa, só variava a comida, e quando variava, à noite já sabia que era aquecida a do almoço e pouco mais mudava. As horas eram sempre as mesmas, as coisas eram sempre feitas pelos mesmos, até a s frases que muitas vezes se resumiam a palavras, eram mecânicas, não tinham alma, despejadas como um balde de água para quem as quisesse apanhar, e eram apanhadas sempre. Ali havia respeito, educação, valores que não mais existem e muito pouca paciência, apesar de haver todo o tempo do mundo, pelo menos para o menino.
Entre bocejos na janela apreciava os mesmos movimentos dos vizinhos de ontem, e de anteontem…quase podia adivinhar o que iriam fazer a seguir, quase que ouvia o que não conseguia ouvir só de olhar para as suas bocas, às vezes abria a janela só para confirmar e confirmava-se, sorria baixinho não de felicidade…mas de um sentimento que muitas eram as vezes que o preenchiam, um sentimento como um suspiro, um suspiro forte e prolongado de quem pura e simplesmente está farto, farto daquela vida, não sabia se da vida. Mas ninguém podia saber, só ele e o mundo dele gigante que até a Marte chegava e dava voltas e mais voltas como a volta ao mundo e os oitenta dias.
Certo dia acordou com vontade, como aliás sempre tivera acordado, de fazer alguma coisa, alguma coisa diferente…pensou, pensou…ia pensando enquanto também ele em jeito de robot se aprontava para mais um dia de nada…E se algo mudasse, pensava o menino? E se algo que eles não estivessem preparados acontecesse, e se na rotina houvesse um prato partido que não era suposto ser partido e fizesse tamanho barulho que acordasse de vez aquela gente…e se aquela gente até fosse mais do que gente e tivesse vida por detrás daquelas fardas que envergaram logo ao inicio da história…que anunciam apenas a morte…
Foi passear, de resto como sempre, nada lhe ocorria…o céu estava azul, sem nuvens, o sol brilhava e ofuscava a visão, arranca uma pequena flor da terra e coloca-a na orelha…caminhou, caminhou, nem ele sabia quantos passos tinha dado, é que às vezes contava-os tal era o vazio de que a sua mente sofria, e sentou-se por fim num pequeno monte de onde podia ver a aldeia.
Enterrou de novo a flor no chão, não gostava de ficar com a ideia de que a tinha morto apenas porque resolveu apanhar uma flor da terra, apenas por capricho. Mas esse facto também o irritava, estava a ficar como eles, estava a morrer, a viver mecanicamente, a fazer sempre tudo o que se deve fazer e a não fazer sempre tudo o que não se deve fazer…
Isso por momentos enraiveceu-o e num acto impulsivo arranca uma pétala da flor. Como quem não quer chorar sozinho, como quem não quer a mesma vida para a flor também…e suspira num silêncio profundo fecha os olhos mas não consegue adormecer, a pétala não o aquecia, não o acolhia, tinha que a estar constantemente a segurar para não voar, e o tempo estava bom, o que seria se não estivesse.
Quis perder a noção do tempo e ser um menino pela primeira vez na vida…não voltou para casa…haviam de o encontrar, pelo menos algo de diferente naquele dia aconteceria, nem que não fosse um trajecto diferente para os pais.
Como é típico de todos os pais acharam estranho o menino não estar em casa a horas tão tardias e resolveram ir procurar, não foi difícil…o menino estava mesmo ali à beira, bem pertinho de casa, não o precisaram de acordar pois apenas fingia que dormia, queria ver e ouvir a reacção dos pais. Ouvia outras vozes, eram certamente os vizinhos que por aquelas terras também ali andavam. Mas ele não percebia o espanto que ouvia.
Tinham visto a flor. Não estava ali aquela flor ontem, nem anteontem…como estaria ali uma flor plantada e já quase murcha, se nem a viram nascer…mas não era esse o caso.
Estava ali uma flor num sítio onde não estava nenhuma flor. E foi a procura pelo menino que despoletou essa curiosidade, essa novidade, porque tudo naquela terra era novidade empolgante, bastava ser novo, diferente.
Todos os dias algo novo na história surgia, agora um arco-íris tinha surgido quando o menino avistou a flor, e foi por segui-lo que a encontrou, uma mensagem divina talvez, ou uma força do destino que ali o levasse, como um cobertor que se puxa mas nunca chega, como a folha que o cobriu e o acolheu e que ele ainda não percebeu o espanto de todos em tal ter acontecido…
Aquela gente via com olhos de ver, mas não com olhos de sentir, a flor essa foi falada durante muitos e muitos anos, o milagre do menino também…e o menino?
O menino continuou triste. O menino continuou sozinho. Sem perceber o que tinha feito, algo maior do que ele próprio de certeza porque a ele que era pequenino não o viram, viram-no como um gigante mas esqueceram-se da sua pequena alma que entorpecida chorava por atenção. Mas um sorriso na cara ele tinha, os pais não podiam saber… Os pais não sabiam muitas coisas do menino e o menino sabia coisas a mais dos pais, e dos mais velhos.


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