domingo, 27 de abril de 2008

CHEIROS


Tenho tanto para escrever, para falar, para soltar...a minha necessidade de evasão acumula-se dia após dia sem que o meu corpo se mexa, se sinta, se ressinta. Apenas vou guardando memórias cada vez mais vivas na minha alma, no meu coração. Memórias, recordações, palavras, gestos e promessas...coisas das quais não me consigo desligar nem por escassos momentos, o momento de uma gargalhada é rápidamente cortado com outra gargalhada interior de uma outra coisa qualquer. Sinto-me a viver uma vida que já foi a minha, a reviver e a tentar sobreviver a um presente que pode ser lindo, pode, mas na realidade acaba por não ser, tantos são os fantasmas que o consomem, as realidades passadas que o ocupam, os sentimentos de outrora que o perpetuam.
Às vezes acordo e luto, e quero lutar, e quero olhar para a frente como se o caminho tivesse começado aqui, com o devido amor dentro do meu coração que minuto após minuto se parece alimentar de falsas ilusões, e de esperanças infundadas. Mas depois...e foi o que me levou a escrever este texto agora, neste preciso momento...um cheiro, um simples aroma consegue destronar tudo o que conquistámos ou pensámos conquistar em semanas, meses até. E aí damo-nos conta que a nossa fuga não passa disso mesmo, de uma fuga, é também um processo, mas não é um processo que nos permita ganhar forças, amadurecer e acima de tudo ultrapassar de forma o mais possível positiva e sorridente o que tantas lágrimas já nos fez derramar. Damos conta que afinal estamos na estaca zero e que a casa continua por construir, aquela pequenina casa onde vamos guardar o sentimento para todo o sempre, sabemos onde ele está e como tal escusamos de andar sempre a revivê-lo, a procurá-lo e talvez a encontrar dentro da nossa organização, momentos desarrumados, dos quais ainda não fizemos o verdadeiro luto. Aquele que nos permite viver em paz.
Começar a construção demora, custa...e não se quer, não se quer...talvez o cheiro seja mais forte do que aquilo que um dia pudemos sequer imaginar.
Olhei para o frasco, não era de perfume...e ainda pensei em ignorar o pedido feito em voz alta no meu coração, mas não consegui. Abri a tampa, olhei, deitei todo o ar fora que tinha dentro dos meus pulmões e inspirei de olhos bem cerrados...que maravilha...vozes, risos e sorrisos, palavras, dias, calor, cansaço, fome, um beijo, um banho...uma série de imagens passaram a mil mesmo diante de mim, imagens da minha vida e de cada vez que aproximava o nariz a história continuava e se não me tivesse olhado ao espelho e ter tido pena de mim mesma, teria certamente ficado ali o resto da noite.
Acho que tão depressa não me esquecerei da cara que vi reflectida no espelho, uma cara que não era a minha, uma expressão que eu já não me lembro de fazer, de ter, um sorriso, um sorriso que só consigo descrever como estúpido e que lentamente me levou a um choro silencioso, ainda que compulsivo, só de pensar no estado a que as pessoas chegam.

1 comentário:

Maria Cota disse...

Fiquei literalmente sem palavras...Este texto é de uma profundidade, de uma sensibilidade tremendas. A poesia infiltra-se me cada palavra, em cada frase, deixando-nos completamente extasiados.
Por vezes, um cheiro, um olhar, um gesto atraiçoam-nos por completo, desarmam-nos. Somos vítimas dos nossos próprios sentidos e do acaso, daquilo que pura e simplesmente não controlamos e que, por mais que tentemos, não conseguimos arrumar nesses armários estanques onde colocamos as memórias e tentamos compartimentar tudo.
Mas o caminho faz-se caminhando, já dizia alguém, por isso não duvido que um dia sejamos superiores aos nossos sentidos e, se surgir algum cheiro, nos limitemos a esboçar um sorriso de alegria sentida, sem que as lágrimas ousem sequer correr!

Mil beijinhos minha irmã!
Mary Cota